quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Passo ao lado de ruínas: casas, jardins. Há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?

Diz Roland Barthes que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda de chuva ou de neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorteamento, da confusão, de perder o pé, foi maior. Os anos escorrem uns sobre os outros de tal forma que a noção de quando acaba um e começa o outro se perde. Os lugares transitam, mudam de sítio, perdem a ordem cronológica. 

É preciso fixá-los. Prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.

(25Out22)

Como a memória começa a ser intermitente como a luz do pirilampo tomei a resolução de resumir todos os dia no pequeno espaço reservado a cada um deles na agenda que comprei.

Escrever por escrever nunca é escrever por escrever porque esse exercício põe em movimento muito mais do que o papel e a caneta; a questão transporta-nos à dilemática da arte pela arte que não resume a arte.
É que as palavras para fazerem sentido, qualquer sentido, têm que ter um fio condutor e esse fio é o do raciocínio, é o pensamento.
E não há coisa mais necessária ao homem.
Pensar, o maior desporto, o maior exercício, o maior luxo.
Do que se escreve alguma coisa fica. E o que fica é a nossa maior preocupação. Como ter chão sob os pés.

Estar à espera parece ser a grande, a maior e única ocupação da maior parte da humanidade. E a grande espera, a maior, a omnipresente, é a da morte. É a espera que engole todas as outras e a única que não oferece qualquer dúvida. É mesmo a única carregada de certeza. Mas de uma certeza em que não se acredita.

(Ter,10Mai22)

Como o tempo arredonda os bicos das coisas mais escandalosas e escabrosas! A paixão acaba sempre por obter o seu perdão.

A doçura di viver não estará sempre ligada a uma certa inocência? A uma leveza que não admite o pesadume e antes advoga a flutuosidade. Por amor tudo é permitido: é a lição de Prima della Rivoluzione.

(Sex,11Mar21)

As surpresas que as falhas de memória nos provocam! para dispersar a minha apreensão dizia-me a minha amiga que eu sempre lhe tinha dito que era distraído. Mas a verdade é que temos que viver com o que temos e com o que não temos.

As falhas de memória também alimentam as obsessões; assim, sem qualquer remorso ou arrependimento podemos repetir indefinidamente os mesmos gestos e atitudes como quem vai repetidamente á fonte sem ter consciência de estar já saciado.

(sex, 6Dez21)

Depois de um longo interregno, aqui estamos. O que esqueci hoje? Talvez os óculos de leitura, não sei. Não parece grave, mas pelo sim pelo não, e de todos os modos, resolvi ter uma tábua, um corrimão, um calendário onde escreverei em todos os dias aquilo de que me esquecer. Não tenho dúvidas de que haverá imensas repetições, recaídas. Serão, porventura, um registo das obsessões. Mas o que é certo é que o esquecimento veio para ficar. Para ocupar cada vez mais espaço na cena. Para finalmente a ocupar por completo.

(Cinemateca, 21Nov22)

Parece-me ter chegado à idade de tudo. 
Tudo vi, tudo conheci, já tudo nada me diz.
Tão rodeado de tudo praticamente tudo me falta.
A vida talvez seja isto:
a contradição em estado puro.


TUDO

"Uma palavra descarada e inchada de arrogância
Deveria ser escrita entre aspas
Finge nada deixar de fora,
para concentrar, incluir, conter e ter
Mas é apenas
um pedaço de tempestade"

Wislawa Szymborska

terça-feira, 15 de novembro de 2022

 (Sex, 26 Nov 21)

Este caderno coincidiu praticamente com o período da pandemia: tempo suspenso, parado, vazio... em que os dias não param porque são todos iguais. Tempo de isolamento, em que não se pode abraçar ninguém, nem beijar... nem sair, nem festejar... Tempo em que a associação característica do que é social é interdita ou, pelo menos, desaconselhável. Poderia ser um bom tempo para a criação pela solidão que pressupõe, pelo isolamento, pelo tipo de tempo que se vive (um relógio sem ponteiros). Mas tempo mais dramático para oa amantes não deve existir. Os amantes que estão sempre mais separados do que gostariam, são aqui separados por tudo. Até pelo silêncio. O que talvez acabe por ser o mais cruel.

Com o termo deste caderno talvez a minha atitude face ao tempo da pandemia acabe por mudar. Já tenho propósitos. Não posso dizer que não tenha já alguma coisa. (Ignorá-lo é uma forma de negar-lhe a existência).

Sadismo Cósmico

Há muito que o mundo se desfigura
tudo começou, era já um prenúncio
do que aí viria, e da proporção climática 
dos acontecimentos futuros,
com a invasão dos escaravelhos
que destruíram a sinalética da paisagem 
e os palmares que ficaram para sempre 
implantados na minha memória.
Antes já tinha vindo a troca da moeda
mas isso foram trocos
depois o atentado à linguagem
em que tiraram letras às palavras
desfiguraram-nas como acontece às caras
quando se vaza um olho
ou se enriquece os seus atributos
com uma cicatriz.
Hoje o mundo inteiro é uma colónia
sem colonizador.
Não me venham dizer
que é necessário alguma coisa
morrer para tudo continuar a viver.
Não, a construção da beleza no mundo
é muito mais lenta 
do que à sua destruição
a qual assistimos.


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O volte-face há muito aguardado! O Verão bate com a porta. De repente, um outro mundo se nos oferece. O céu escurece. Por detrás do nevoeiro espreita a chuva. O frio entra pelas frinchas das portas e das janelas. Mais uma estação. É mais um ano que fica para trás. Está abafado: anuncia-se a chuva.

Alcança-me um longínquo perfume.

O tempo é um vendaval inexorável... Caem as folhas amarelas das árvores secas ao ritmo das bátegas que sincopadamente caem do céu tamborilando nos beirados. O Verão foi-se, finou. Recomeça o infindável ciclo das estações. Imutável enquanto tudo se transmuta. O céu escurece como se as nuvens fossem uma cortina que se correu.

No jardim, molhado, tudo brilha.

(Qua, 3 Out 21)


O tempo é um vendaval inexorável

(tudo arranca, tudo leva consigo)

caem as folhas das árvores

secas, amarelas, retorcidas

ao contrário das bátegas

que sincopadamente caem do céu.

O Verão foi-se, finou-se

recomeça o infindável

ciclo das estações

o imutável

enquanto tudo se transmuta

(afinal como nós próprios)

O céu escurece como se as nuvens

fossem uma cortina que alguém correu.

No jardim molhado, tudo brilha.

Voltei a encontrar a sépia da minha juventude: naquele tempo acreditava que o que se escrevia verdadeiramente se escrevia com o sangue. O mais próximo do sangue seco é a sépia.

Hoje, já me esqueci da importância do sangue.
Já me esqueci que tudo é simbólico: que qualquer parte da vida, por pequena que seja, a compromete na sua totalidade.

Talvez fosse por isso que o António Pina dizia que quando compreendia tudo o que umas palavras diziam era porque faltava alguma coisa.

(Qua, 13 Out 21)

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Que dias estes!... dias que transformaram o viver num desafio... a incerteza revestiu todos os aspectos da vida, desde os mais sagrados: a saúde, a visão do mundo, a imagem do mundo que nos resta e que nos espera, até às coisas mais elementares como o funcionamento dos electrodomésticos  ou dos instrumentos que de um momento para o outro -- e sem explicação -- deixam de responder como de costume.

E é preciso saber viver com esta instabilidade e incerteza, relativiza-la, respirar fundo e continuar.

Viver uma pandemia é estar permanente imerso na estranheza. Tudo a abanar e nada se poder dar por certo. As fronteiras diluíram-se e esbateram-se. Os velhos hesitam entre o medo e a indiferença pelo que sempre acreditaram, os jovens, entre a eterna esperança e a descrença.

Durante anos ela já fermentava: 'um dia de cada vez', mesmo que não se acreditasse verdadeiramente no que se dizia. Hoje é uma simples realidade, porque não se consegue vislumbrar com nitidez o dia seguinte e o ontem já foi há demasiado tempo.

Outra coisa que se estabeleceu foi a distância, dizem-na social para vincar que é relativamente aos outros. Se só há agora não pode haver rota, nem destino.

(Qua, 21 de Jul 21)


O que a Pandemia veio fazer foi estilhaçar todas as rotinas que sustentavam as actividades em que se dividia a vida.
Agora, parece que a questão é como reconstituir a vida fragmentada e desarticulada.

(Qua, 13 Out 21)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Cinemateca, 'O pecado mora ao lado'
25 Out 22


Passo ao lado das ruínas: casas, jardins... há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?

Diz R.B. que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda da chuva ou da neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorte, da confusão , de perder o pé foi maior. 

Os anos escorrem uns sobre os outros, perde-se a noção de quando acaba um e começa outro. Os lugares transitam, mudam de sítio e perdem a ordem cronológica. É preciso fixá-los, prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.

Os obstáculos para viver somam-se, amontoam-se à medida que o tempo passa... vence-los será como voltar a encher o frasco com o mesmo líquido depois de este se ter derramado...



quinta-feira, 20 de outubro de 2022


A pandemia é uma coisa tão recente e tão antiga! Quando queremos reconstituir os acontecimentos quanta dificuldade... Sabemos que foi de repente, de súbito, de fora para dentro. As instruções para alterar comportamentos vieram pelos meios de comunicação, a televisão principalmente; as actividade foram uma após outra suspensas e canceladas. O fecho da sociedade talvez para mim, afastado da vida colectiva e profissional, tenha sido ainda mais abstrata, abrupta e irreal. Irreal é a palavra que talvez melhor descreva o sentimento que a situação suscita. Mas prolonga-se há já tempo suficiente para se compreender que não será passageira nem inócua, isto é, que o reatar não parece possível nos mesmos moldes. Existe o medo do outro, o medo do contágio. Para além das consequências imediatas haverá as que se projectarão nos tempos -- difíceis de imaginar -- que se seguirão.

(21 de Março de 20, sab.)


A pandemia rarefez o mundo. Sugou a vida das ruas. Desfez hábitos. Estilhaçou rotinas. Cavou abismos. Silenciou vozes. Deixou de haver notícias.

               (1 de Outubro de 20)


O caderno da Pandemia -- o diário, no seu duplo papel -- afrouxar a tirania do tempo e sacudir os horários.

(Sexta, 13 de Novembro de 20)

Fui à estação, dos caminhos de ferro, ver se os comboios continuavam a circular no recolher obrigatório. No meu imaginário só em estado de guerra é que havia recolher obrigatório: agora sei que o mesmo pode ocorrer, ou ser decretado, em pandemia. Hoje e talvez não só hoje, mas habitualmente estaremos pouco atentos, tudo se conjugou: um dia de nevoeiro e nuvens baixas a ameaçar sempre chuviscos, ruas totalmente desertas, tudo parado! nem o vento participa nem abana seja o que for e sobre tudo isto como um grande laço: um silêncio total em que os pequenos ruídos parecem sons do além. Mas esta estranheza sublinha a beleza do que se vê.
O primeiro dia do recolher obrigatório neste fim de semana desusado e o resto do dia de chinelos e de pijama.

(Sábado, 14 de Novembro de 20)

A Pandemia, uma estranheza que se apoderou do mundo, ensinou-me muita coisa e recapitulou várias oportunidades. Como todas as doenças prolongadas, (haverá outras?), empurrou-me para os corredores da minha própria biblioteca. As doenças sempre foram períodos de leitura intensa. A reclusão, o confinamento, para quem vive sozinho, obriga-o a encarar-se a si próprio, não há para onde fugir. A casa, a nossa própria casa, é a nossa prisão, é o nosso castelo onde deixa de haverrecantos desconhecidos, onde se abrem novas alamedas e guaritas. Tomei posse da minha casa com esta doença. A Pandemia operou também uma profunda mudança no tempo, ao reduzi-lo comprimiu-o. Por muito que nos custe veio dizer-nos que não há amanhã e que hoje não é uma passagem é um estado onde quero habitar: Desenhar continuamente, ter um projecto de escrita.

(26 Abril de 21)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

 Recordo e assombra-me sempre a recordação da calma do meu irmão.

Uma vez, eu, sempre a contar o tempo, perguntei-lhe se consultava algum horário antes de se pôr a caminho da estação para apanhar o comboio. Respondeu-me com um sorriso que quando queria ir-se embora se punha a caminho da estação e o comboio que viesse quando tivesse que vir.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Dia de Reis. Reis Magos claro! que depois da oferta dos presentes desapareceram para sempre. E que voltam todos os anos para nos relembrarem da sua ausência.


(6 de Janeiro de 2020)

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

(1ª versão)

 Já passei uma horas em tantos sítios...
Horas inesquecíveis, 
que recordo quando entro em certos locais.
Horas enterradas no passado
que é como quem diz, na memória
já que o passado não existe sem ela.
O mais trágico, -- e o mais frequente -- ,
são as memórias sem testemunhas.
Quando desaparecermos
desaparecerão também essas recordações
que ainda hoje
lá do meio do nevoeiro onde sobrevivem
nos apertam o estômago
e nos enchem os olhos de lágrimas.
Minto. Exagero.
É que o silêncio aperta o coração.


(Reescrita)

Entrei naquele café
onde certas horas e o teu retrato
ficaram para sempre.
Trágico e perturbador
é já não haver testemunhas.
Ficarmos condenados
à solidão e ao silêncio.
Quando desaparecermos
desaparecerão também 
as recordações
que nos apertam o estômago
que nos enchem os olhos
de lágrimas. 

Minto.         Exagero.
É o silêncio
a apertar o coração.

domingo, 24 de julho de 2022

A propósito de Alphaville, de Godard

Voltei ao mesmo local cinquenta e poucos anos depois. Para tentar perceber. Da razão de ser destas palavras passei a outro motivo mais lato, e mais importante, o que teria acontecido nesses cinquenta anos?
(A verdade é que o que teria então sido anunciado está hoje completamente vigente).

O que se teria passado? Como condensar num relance tantos acontecimentos? Em que uns projectam uma sombra que obscurece outros e os coloca definitivamente longe da luz...
No entretanto, a morte faz ocasionalmente as suas sortidas... como um aguaceiro rápido e repentino. Com a gravidade inexorável de tudo quanto existe neste mundo...
Queixo-me da falta de comunicação: não compreendi a tempo o que me diziam; sempre foi impossível fazer ver aos aos outros o que via; nunca estive ao mesmo tempo que os outros no mesmo sítio... enfim, cheguei sempre antes ou depois. Estive sempre no palco mas ao lado do que se passava na cena.
E de tempos a tempos estas irrupções da presença da morte. Como um gongo ou as pancadas do bastão no teatro que anuncia que o espectáculo se iniciará dentro de momentos.


segunda-feira, 18 de julho de 2022

 Domingo: gente como um enxame de moscas...

Fui dar um passeio para sair de casa pelo menos uma vez, nesse dia. Vivo num ermo, fui até à terra mais próxima. Que saudades da calma e serena vila piscatória que conheci! Liquidaram todos os locais de estadia, encheram as praias, incrementaram o uso dos automóveis e das colunas de som móveis... uma chusma de gente ruidosa e excitada para quem o ruído é necessário para saberem que estão vivos... Infelizmente uma terra quase morta que se ainda resiste é porque tem uma estrutura antiga que permanece em rituais como a tradicional saída da missa dominical...

segunda-feira, 6 de junho de 2022

 Estes cadernos foram sempre uma fórmula de refrigério.

Um parêntesis feliz.

Agora que a exaustão provocada pela febril actividade da minha dispersão se acentua também se condensa a imperiosa necessidade da calma induzida pela reflexão.

Recordo com nostalgia os interregnos da rotina dos dias  e para a aguentar o registo do caudal dos pensamentos e sentimentos.