sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Estados de Espírito




[...] É no Castelo que está traçada a preocupação de Kafka pelo grande espaço da presença, presença como tirania, como vocação de vampiro que há no ser humano. A torre do castelo, que se divisa de longe, é o símbolo da presença, e desde longe ela irrita e faz com que a alma humana se encabreie como uma cavalo espavorido. O castelo é a sede duma imensa administração, em que a hierarquia reina até ao infinito. Destina-se a caçar a originalidade humana, a fazê-la depender da sua ordem prodigiosa. O único meio para lhe escapar é o de fazer-se pequeno, como um insecto; pequeno e repugnante e fácil de remover da face da terra.
[...]

Agustina Bessa-Luís, Kafkiana (2012)




"(...) É uma prisão-hospital, o pior desses dois mundos. E para a trindade da essência do mal estar completa, seria apenas necessário transformá-la num convento: fui internado na antiga ala de psiquiatria. A minha cela é uma sala de espera. Foi premonitória a leitura do Diário de Etty Hillesum. Quando circundei o muro alto do estabelecimento prisional, antes de entrar, pareceu-me ouvir o rilhar de limas contra o ferro das grades: terei que limpar o terreno, criar uma terra de ninguém, um muro de silêncio entre mim e os outros. Gritar não me servirá de nada: os outros estão demasiado longe e falam outras línguas, só perderei as forças. Procurarei ler e escrever, para escapar como fumo entre as grades. O papel e o lápis, podem ser o pão e a água que me manterá vivo. O inferno, para ser completo, fica sempre ao lado do paraíso. Eis o tempo da reclusão, enquanto o mundo se dana nas conflagrações finais e nos últimos estertores. Que Deus me faça pagar por tudo agora e que me liberte na caminhada final."

R.M.G., Páginas soltas do caderno de um condenado

quinta-feira, 22 de novembro de 2012


Tudo se passa à nossa volta, é só preciso estar atento.




Assim, tão suavemente como a areia na ampulheta, se escoou a manhã... e ao sol do meio-dia de inverno pensei no que sempre soube, -- como sempre --, que neste mundo há coisas do outro mundo e que eu sempre lá tive um pé. Somos muitos e vários, e hoje ouvi que alguém tinha dito que se não o aceitássemos deixávamos de ser uma pessoa para passar a ser uma personagem. Eu resumo-me a mim, tenho o meu eu predilecto. E é esse: o que acredita no outro mundo e se sente aí no seu. As palavras, como a areia, escapam-se-nos entre os dedos, e têm pelo menos dois sentidos, que nos levam ao inferno e ao paraíso. Como se fizéssemos vinte anos outra vez.



terça-feira, 20 de novembro de 2012


Cheguei ao cais na tarde em que todos os barcos tinham já partido.
(Isto quer dizer que é preciso uma certa distância para o pincel varrer a tela, que reflectir é contemplar. Agir esperando sempre o milagre  é próprio dos loucos e dos desesperados, e por mais romântica que seja a ideia, só vejo uma maneira de ultrapassar essa ilusão: é sermos nós o taumaturgo).


segunda-feira, 19 de novembro de 2012



Café.
Sempre que o amor acaba o mundo fica mais escuro. E se ele acaba como sair desta escuridão?
Sempre quer dizer que ele não existe?

Um dia hei-de dizer mais detalhadamente o que sinto. Hei-de ter tempo.



A minha cabeça é o quadro negro onde escrevo a giz: és o que fazes.


Madrugada.
O degelo começou e a torrente arrasta tudo no seu caminho. Uma onda de desespero assola o mundo e faz com que o amor irrompa, como se juntam as mãos para rezar. Há muitas razões para perder a cabeça e outras tantas para procurar a calma do silêncio e a paz na solidão.
Vaga contra vaga: tal é o equilíbrio de forças.
Talvez através da porta da tristeza se chegue ao campo de flores da alegria...
Agora sim, posso dormir.
(Ah!... como gostaria de não me esquecer de respirar...)

domingo, 18 de novembro de 2012


Onde andará a minha alegria e o meu bloco de desenho?
O bloco é muito menos amigável do que o caderno. O bloco é só nosso, o caderno é um sem-vergonha....
Em cada esquina um ouvinte.

Imerso nos seus pensamentos, que imagem tão navegável.

As regras são indispensáveis. Mas o melhor delas é quebrá-las.



O mosto antes de se transformar em vinho tem que fermentar.
Pedras escorregadias no rio que atravessamos a vau.



sábado, 17 de novembro de 2012



A Salvação pela Desordem
Juan Benet escreveu quatro peças de Teatro. “Agonia Irreversível”, escrita em 1966 e publicada em 1969 em Espanha, dá à palavra à...

(Gostei muito)




É a viver que se aprende a viver.

O meu pai dizia-me muitas vezes que me tinha que desenvencilhar. Tomava-o como uma forma diferente de desembaraçar, mas era mais do que isso, vencilho é uma atilho, corda ou baraço de origem vegetal utilizado para atar molhos. O termo designa um desamarrar, um libertar de um amontoado de elementos aprisionados.

Com a visão recuperam-se muitas coisas que apenas pressentíamos.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012


Ainda Proust:

"(...) Nenhum lugar está tão marcado pela presença da minha mãe, e mais ainda pela sua ausência, de tal modo ficou impregnado por ela. A ausência, para quem ama, não será a mais certa, a mais eficaz, a mais viva, a mais indestrutível e fiel das presenças? (...)

in A confissão de uma jovem



A grande arte é pensar com as cores, os sons, os signos, os traços e mais o que houver à mão.

Sinto-me um jovem encerrado num corpo de um velho. Exagero. Ou de um ser sem idade que habita um local que envelhece num mundo que se renova incessantemente.

Não é só ter coragem, é preciso não desistir.

Pensar que se envelhecesse por dentro como se envelhecesse por fora? Que grande ilusão...


O único símbolo de superioridade que conheço é a bondade.

Beethoven
Uma ausência pode saturar o nosso presente mas acaba por depositar-se no nosso fundo e assim passar a fazer parte de nós.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Só se ama o que se procura. O que se procura é o que se não tem. E nunca se perde o que se não tem. Logo, só se perde o que não se ama. Tudo isto é verdade, se o amor for uma procura. Eu não sei nada, muito menos do amor. Mas pressinto que ele é um encontro, não uma procura.
És o meu pão de cada dia!

domingo, 11 de novembro de 2012



Não ter ambições, deixa-nos muito à vontade... Abre-nos uma imensa e ampla liberdade! Na "literatura" ...e não só! ... E a liberdade, é de outro mundo, ...como bem sabe quem alguma vez que lhe sentiu o gosto etéreo (porque ela não se deixa aprisionar... ou não fosse ela quem é!).












© Ferdinando Scianna/Magnum Photos

sábado, 10 de novembro de 2012

Deixou de chover o peso dos dias… mas o intervalo é breve. A poesia sobe-me à boca quando o espírito voga entre a vigília e o sonho. Ou quando me acompanha como a minha sombra. Tu és a mão amiga que me dá a mão.



terça-feira, 6 de novembro de 2012





Sacudo por instantes o peso dos dias como quem abana os dedos dos pés nus. Três minutos atrás alguém recitou um poema. Há tesouros à vista de todos e estão escondidos. Nunca reentramos nos dias perdidos: eles é que vêm ter connosco. Amplas horas, o tempo parado. As pessoas transformadas em estátuas. E o sol abençoando tudo.


sábado, 3 de novembro de 2012



[É espantoso quão perto estão os sonhos e os pesadelos...]

(...) pareço que avanço contra teias de aranha que me prendem os movimentos. Teias de aranha, nada que nos impeça de avançar se não as deixarmos acumular. Devo ao que amo o respeito que tenho por mim. Há certas imagens que faço minhas, o quebra-gelos por exemplo, que avança inexoravelmente sobre o mar gelado...
(deixo para outra ocasião os pânicos, intensos e risíveis, e o abandono dos planos pela incapacidade de conceber o tempo).



quinta-feira, 1 de novembro de 2012


Terça-feira de manhã, [17 de  Março de 1942], 
às nove e meia.



   Ontem à noite, quando ia ir ter com ele de bicicleta, havia um grande e aprazível desejo de primavera em mim. E enquanto eu pedalava em cima do asfalto da rua Lairesse, desejando-o e com sonhos na cabeça, senti-me de repente acariciada por um ar tépido de primavera. E subitamente pensei: "Assim também está bem. Porque é que uma pessoa não havia de experimentar uma grande e terna euforia pela primavera e, também, por todas as pessoas?" Uma pessoa pode igualmente encetar amizade com um inverno, ou uma cidade ou um país. Lembro-me da faia cor de vinho, dos meus anos de adolescência. Tinha com ela uma espécie de relação especial. À noite, podia de repente ansiar por ela, e, então, ia visitá-la. Fazia meia hora de bicicleta e depois andava à volta dela, cativada e enfeitiçada pela sua cor carmim. Sim, porque razão é que uma pessoa não poderia sentir amor por uma primavera? E as carícias do ar primaveril eram tão delicadas e tão envolventes, que mãos masculinas, mesmo que fossem as dele, em comparação com elas me haveriam de parecer rudes.
   E foi assim que cheguei a casa dele. O pequeno quarto de dormir apanhava um pouco de luz vinda do quarto de trabalho e, quando entrei, reparei que a cama dele estava aberta e que, dobrado por cima dela, havia um pesado ramo de orquídeas aromatizando o quarto. E na mesinha ao lado da almofada havia narcisos, muito amarelos, tão extremamente amarelos e frescos. A cama aberta e as orquídeas e os narcisos -- uma pessoa nem precisa de se deitar acompanhada naquela cama. Enquanto ali estive, por um instante, naquele quarto meio iluminado, foi como se tivesse tido uma noite inteira de amor. E ele estava sentado à pequena escrivaninha e de novo me saltou à vista como o rosto dele se assemelhava a uma paisagem antiga, cinzenta e gasta.
   Pois, estás a ver, uma pessoa necessita de ter paciência. O teu desejo deve ser como um navio lento e majestoso, navegando no oceano infinito e não à procura de um local onde largar a âncora. E de súbito, inesperadamente, dás de caras com um local onde ancorar por um momento. Ontem à noite, encontrou o seu ancoradouro por um breve instante. (...)





Etty  Hillesum, DIÁRIO, 1941-1943