quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

AO ENTARDECER, FICO A VER



Ao entardecer, fico a ver

os barcos a desaparecer

e a noite a avançar.

Há uma calma solene no ar

como que a dizer-nos 

que o dia está a morrer.

Como nós, também.

Mas já que estamos

em pleno milagre,

talvez amanhã 

ressuscitemos com ele.


Agora, um pouco depois,

acima da linha do horizonte

uma poalha rosa estendeu-se

de uma ponta à outra.

O verde escuro de algumas copas

Intensificou-se; 

apareceram as primeiras luzes

como alfinetes perfurando

a magnífica tela do cenário.


O silêncio ganha ecos,

o coração do mundo bate.

Os pássaros apressam-se 

a regressar aos ninhos.

Tudo anuncia a lua cheia

Que detrás daquele morro 

aparecerá para depois

se banhar majestosa

no mar que tenho pela frente.


Já se me torna difícil

ver o papel onde escrevo.

Tudo se funde.


O rosa foi-se; agora

é só omnipresente o azul acizentado,

os castanhos e os verdes reunidos,

enquanto um fantasma iluminado

cruza o mar feito lago á minha frente

e todos avançamos em direcção à noite,

à noite e à morte.


A lua cheia reapareceu

e vai subindo no que de

visível ainda sobra do céu.


Onde ela brilha

tudo se apaga

E assim se fecha

o caderno e o entardecer.


Sex, 29 Set 23

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

 GRAVAÇÕES


Caminhos e atalhos

17/03/2017

No caminho não há atalhos:

qualquer atalho é um atraso.


Decisões

26/06/2018

Deus me dê força

para me agarrar

às minhas decisões.


Falhar

17/12/2018

A arte de falhar não é

a arte de perder:

o erro fica connosco.


Casa

18/02/2019

Viver no paraíso

pode não ser suficiente.


Sono

12/05/2019

Adormecer é

estancar a hemorragia

de pensamentos.


Exércitos

11/02/2020

Para fazer um exército 

basta um uniforme, 

basta uma bandeira

e um hino.

Talvez por isso é que não gosto

de nenhuma destas coisas.


O jogo da cabra cega

10/10/2020

A memória anda sempre

atrás da consciência e

chega sempre atrasada.


O idealismo

10/10/2020

Aquilo que podia ser

é o universo paralelo

onde gostaria de me mexer.


Os desgostos

11/10/2020

São tantos os desgostos 

que já não consigo guardá-los. 

Quero esquecê-los.

É por isso que durante toda a vida

dei tão pouco tempo

a cada um deles.


A arte às escuras

14/12/2020

Quantos poemas não escrevi

de olhos fechados

no escuro da noite.


Na hora da morte, num só segundo

08/02/2021

Na hora da morte, num só segundo

vemos desfilar toda a nossa vida,

num só instante.

Eu, que estou a morrer

há muitos, muitos anos,

todos as noites sonho

com o passado em episódios.

Ausência

14/05/2021

Fazes-me tanta falta…

Demorei tanto tempo a perceber-te

que só o comecei a fazer

quando já não estavas!


Espelho

14/05/2021

É impossível prever tudo!

Falta sempre qualquer coisa…

Hoje foi… isto e aquilo,

e aquilo era tão óbvio…

Outra coisa era adivinhar

que iria utilizar este sistema

de falar sozinho e ter a esperança

de que devolvesse as tolices

que aqui planto.


Técnica

14/05/2021

Passei a vida a dominar a técnica

mas depois nunca a utilizei

e acabei por esquecer

todas as possibilidades

que se me tinham aberto.


Hospital de São Francisco

26/05/2021

Então porquê é que o senhor veio cá hoje?

Como? Não sabe? Já se esqueceu?

Então é bom sinal,

é sinal que já passou.

Obrigado, Senhor Doutor…


Torcer a vida

30/05/2021

É preciso torcer a vida

para que ela venha ao nosso encontro.


O lápis

02/06/2021

Naquela manhã percorri

as lojas todas da terra

à procura de um lápis,

vulgaris, de Lineu.

Nenhuma o tinha:

em nenhum sítio

sabiam o que isso era, 

só conheciam o lápis.


A alma e o corpo

20/08/2021

A alma é como o corpo

sente-se quando dói.


Registo

04/10/2021

Registar é fixar.

Pelo menos, tentar.


Jardins da Avenida da Liberdade

07/02/2022

Esquecer-me é a expressão

que cada vez melhor conheço.


Criar o mundo

26/03/2022

Só há uma forma de compreender

o mundo: é criá-lo.


Salvação

03/10/2022

Estou excluído da minha própria

salvação.


A bicicleta

04/01/2023

Primeiro passeio do ano:

qualquer pequeno obstáculo

tem que ser abordado de frente

sob o risco de queda.

É assim com a bicicleta,

com o barco e

com a própria vida.


Um dia aziago

09/06/2023

Um dia aziago,

aparentemente,

já que todas as intenções se goraram

ou quase todas:

bater com o nariz na porta

quando se procura um restaurante

para almoçar, nunca existir a cor

que se procura e pretende,

sentir na pele a ingratidão

da juventude, como uma

invectiva à nossa própria velhice

que já nos pesa tanto

e tanto esforço exige

para ser aligeirada.

Mas, por outro lado,

constatar que o princípio da incerteza

tudo inunda e que assim sendo

nada é já uniforme,

nem sequer a sucessão dos dias.

Talvez a chave para conseguirmos

sobreviver e seguir em frente

seja aquela frase curta e plena,

plena de graça,

de alguém que já não nos acompanha:

É um dia diferente…


A vida e a escola

18/09/2023

Não há escola da vida

que não seja

a escola da vida.










segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Aqui estou -- travado por mim próprio -- e, como dizia R., a conseguir ouvir a passagem do tempo. Com a remota esperança de assistir ao encher da minha própria maré. Sei, e no entanto estou paralisado, que só o fazer pode continuar a tecer o fio da vida.

Filologia, era a nomenclatura para a noção que queria transmitir, o que procurava.

(princípios de Outubro de 22)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Passo ao lado de ruínas: casas, jardins. Há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?

Diz Roland Barthes que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda de chuva ou de neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorteamento, da confusão, de perder o pé, foi maior. Os anos escorrem uns sobre os outros de tal forma que a noção de quando acaba um e começa o outro se perde. Os lugares transitam, mudam de sítio, perdem a ordem cronológica. 

É preciso fixá-los. Prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.

(25Out22)

Como a memória começa a ser intermitente como a luz do pirilampo tomei a resolução de resumir todos os dia no pequeno espaço reservado a cada um deles na agenda que comprei.

Escrever por escrever nunca é escrever por escrever porque esse exercício põe em movimento muito mais do que o papel e a caneta; a questão transporta-nos à dilemática da arte pela arte que não resume a arte.
É que as palavras para fazerem sentido, qualquer sentido, têm que ter um fio condutor e esse fio é o do raciocínio, é o pensamento.
E não há coisa mais necessária ao homem.
Pensar, o maior desporto, o maior exercício, o maior luxo.
Do que se escreve alguma coisa fica. E o que fica é a nossa maior preocupação. Como ter chão sob os pés.

Estar à espera parece ser a grande, a maior e única ocupação da maior parte da humanidade. E a grande espera, a maior, a omnipresente, é a da morte. É a espera que engole todas as outras e a única que não oferece qualquer dúvida. É mesmo a única carregada de certeza. Mas de uma certeza em que não se acredita.

(Ter,10Mai22)

Como o tempo arredonda os bicos das coisas mais escandalosas e escabrosas! A paixão acaba sempre por obter o seu perdão.

A doçura di viver não estará sempre ligada a uma certa inocência? A uma leveza que não admite o pesadume e antes advoga a flutuosidade. Por amor tudo é permitido: é a lição de Prima della Rivoluzione.

(Sex,11Mar21)

As surpresas que as falhas de memória nos provocam! para dispersar a minha apreensão dizia-me a minha amiga que eu sempre lhe tinha dito que era distraído. Mas a verdade é que temos que viver com o que temos e com o que não temos.

As falhas de memória também alimentam as obsessões; assim, sem qualquer remorso ou arrependimento podemos repetir indefinidamente os mesmos gestos e atitudes como quem vai repetidamente á fonte sem ter consciência de estar já saciado.

(sex, 6Dez21)

Depois de um longo interregno, aqui estamos. O que esqueci hoje? Talvez os óculos de leitura, não sei. Não parece grave, mas pelo sim pelo não, e de todos os modos, resolvi ter uma tábua, um corrimão, um calendário onde escreverei em todos os dias aquilo de que me esquecer. Não tenho dúvidas de que haverá imensas repetições, recaídas. Serão, porventura, um registo das obsessões. Mas o que é certo é que o esquecimento veio para ficar. Para ocupar cada vez mais espaço na cena. Para finalmente a ocupar por completo.

(Cinemateca, 21Nov22)