terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O prazer da escrita


‘Escrevo só porque me ajuda a pensar’

Macedonio Fernandez


Durante dois ou três anos frequentei a mesma esplanada. Com o sol da manhã, o frio, até com a chuva forte fustigando o toldo. Criei raízes. Não precisava de encomendar o café. Ela – a patroa, a empregada – já sabia de antemão. Conhecia já os fregueses mais habituais. Ali passei, no conjunto, muitas horas, com os olhos no vazio enquanto procurava esta ou aquela palavra para a conduzir a este caderno. Uma prece matinal e quotidiana. Depois, respirava fundo, levantava-me e partia para o dia.
De repente, tudo se alterou e mudei de poiso, não de costume. E aqui estou. Mas aquele lugar, aquela esplanada com os fulgores de aqueles momentos moram e morrerão em mim quando eu também morrer.

Post-scriptum:
Aí esperei em vão que a musa encarnada se sentasse ao meu lado mas, por outro lado, obtive um ponto de apoio para a ave do pensamento poisar os pés nesse porto de abrigo.




terça-feira, 15 de setembro de 2015


As propriedades curativas da solidão. (É uma expressão que Mishima usa algures no primeiro volume da sua tetralogia do Mar da Fertilidade -- e que nunca esqueci). Talvez ter começado a ler agora o Não-humano de Osamu Dazai mo tenha recordado. Ontem tinha chegado a pensar que o mais importante era fixar um objectivo, como quem pendura uma cenoura à frente do focinho do cavalo para o fazer andar. Pura ilusão! também ontem, ao cair do dia útil, reencontrei uma testemunha da minha vida, um companheiro de infortúnio com quem travei uma longa conversa: cheguei à conclusão que era um sábio que encarava a vida como uma maratona e que o seu objectivo e prazer era praticá-la: um atleta. Aqui, ali, em Trondheim, na Tailândia, na China ou em Singapura: quanto mais longe, melhor. E transpõe e aplica o conceito ao seu dia-a-dia. Levanta-se sempre muito cedo apenas pelo prazer de se levantar cedo. Este é o segredo: as coisas por elas mesmo. Quem está consigo nunca está só e bastam dois para estabelecer uma norma.



segunda-feira, 14 de setembro de 2015


Fui ver!...
Saí intempestivamente da cama, dormi mal, ansioso, temeroso que o despertador não funcionasse... e que não acordasse a tempo. A tempo! A tempo de recolher todas as emoções que esta manhã me deu: a hesitação que fez a mulher de meia-idade ficar plantada no cais enquanto as portas  se fechavam com estrondo e na plataforma apinhada era contemplada com comiseração enquanto o comboio arrancava ou o jovem que amparado por algumas, poucas, almas generosas, pálido e a desmaiar desceu numa das estações para a gare onde se recompunha enquanto a composição impaciente aguardava o retomar da marcha.
E agora aqui estou a contemplar o momento... acicatado pela questão de sempre: são tão preciosas estas primeiras horas do dia!... ainda que a elas aceda pelas piores razões.
Como mudar isso? Que objectivo estabelecer que tenha força para me fazer mover?
Terei força, imaginação e coragem?



quinta-feira, 10 de setembro de 2015



Não vejo grandes soluções... a única coisa a fazer é continuar, aguardar aquilo que for. Pessoas? A maior parte só fala de dinheiro. Daí não ser possível manter a sanidade e a inteligibilidade, -- mesmo para nós próprios --, sem o confronto, a perscrutação e a consolidação que pressupõe a escrita, mesmo e principalmente a confessional.
Não se tratam de punhetas.
(A alternativa é não pararmos  de nos mexer).

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

31 Ago 15, seg


Tudo se conjugou para desfigurar o mundo: o escaravelho da palmeira, as mudanças da moeda, da ortografia, da língua, a alteração das leis, as guerras e as migrações, o saber o que é a arquitectura e a maneira de a fazer, o perceber na carne que nada é eterno, o rendermo-nos à ideia que a falha é redimida pela tentativa... Tudo nos arrasta para esse abismo desconhecido que é o amanhã.

(A lista, infinita, é para continuar)



sexta-feira, 28 de agosto de 2015


Tempo e calma para contemplar a paisagem interior! Onde estais?
Tenacidade.

As cicatrizes são outra forma de esculpir o corpo. E não há nem tempo nem vida sem marcas.
Eu, a parte de mim que se preserva e me envia para o mundo, só existe aqui, nas folhas do caderno. E quando o fecho, que sensação de tarefa realizada, que alívio!, a hora, o dia, até a própria vida não parece perdida. (Embora saibamos que não é verdade, que está à partida condenada, nada disso nos importa e esse sentimento é leve e veloz como a liberdade).




sexta-feira, 17 de julho de 2015


O silêncio para ser silêncio tem que ser completo.

Tenho que esquecer! Esquecer a confusão entre o detergente para tecidos delicados e a lixívia perfumada para a fixação de cores! …Eu já não vejo!  Insidioso, o esquecimento introduz-se de permeio entre os dedos que me orientam na acção…
O outro, o esquecimento libertador, que lava a culpa, alivia o peso do remorso e a sombra do erro, esse tarda em vir e assim se torna ainda mais penoso continuar.
Nenhum discurso se constrói sem que antes não se fixem os grafemas.
A velha gaiteira apanhada na saída da loja com os artigos roubados: que ar aliviado tinha quando ainda ofegante, com o brilho da adrenalina nos olhos após a terem deixado seguir, a vi no transporte público quando abandonávamos o grande armazém.

Falhar e rejubilar: não tenho a certeza se não foi uma mão mais certeira que escreveu o que aconteceu. 



quinta-feira, 16 de julho de 2015




O espaço e o tempo são indissociáveis: por exemplo, para atravessar uma avenida ou para cruzar um rio o impossível resolve-se através dos apoios intermédios (não há vão que se não transponha quando o subdividimos). E assim acontece com o tempo: é a única justificação para as datas.






quarta-feira, 1 de julho de 2015

1 Jul 15, qua


(nada está perdido)


Descobri, passados cinco anos, no fundo de uma antiga mochila um velho caderno que julgava perdido. Tive, quando dei pela sua perca, um enorme sobressalto, como se um pedaço de mim tivesse caído e ficado para trás na estrada ou alguém ou alguma coisa tivesse apagado definitivamente da minha mente e tornado irrecuperável a recordação de certos momentos, vitais como todos os que nela têm morada. Afinal, melhor que a projectada hipótese de reconstruir esses registos a partir do que pudesse lançar mão, o que acabei por nunca fazer, deparei-me com o mítico caderno passados cinco anos. O que posso aprender com isto? Intactos, os escassos pensamentos aí presentes: umas horas, uns momentos... a dose de eternidade a que me concedo o direito.
(Para quem está de fora quando estou dentro de mim estou fora do mundo, o que leva algumas boas e ingénuas a inquietar-se e a temer que esteja possuído por qualquer desgosto com a vida. Curiosamente é precisamente o contrário o que se passa: nunca estive tão vivo, nunca amei mais a vida do que nesses momentos em que me abismo nela).




quinta-feira, 25 de junho de 2015


Tudo é breve, excepto a ilusão.

Envelheço vertiginosamente… cheguei, na longa escadaria, à zona dos patamares… (Durante uns tempos… deslisas, tudo parece estável, inalterado. Depois, de repente, sem aviso prévio, cais do cobertor para mergulhares ao longo do espelho… o abismo sugou-te, sem te dar hipótese de recusar… e desces, e desces… -- até embater com estrondo no novo patamar -- , tens uns tempos para recuperar do choque e retomar o fôlego, a ilusão que estiveste sempre aí, mas de seguida, o processo reinicia-se, a descida continua…).


A cabeça flutua ainda sobre os ombros, como uma flâmula sobre a mole que avança na planície… enquanto puder sonhar iluminarei o caminho.


sexta-feira, 19 de junho de 2015



Amo as palavras: mas não com uma paixão cega, mas com uma paixão esclarecida, o que já por si significa um salto epistemológico, uma aporia ou qualquer coisa como a explicação do aparecimento dos números irracionais.
As palavras dão significado às coisas o que é a suprema ironia.
Como não olhar para as coisas com um olhar nostálgico se sabemos o que aguardar do futuro?




quinta-feira, 18 de junho de 2015


As manhãs gloriosas de Verão!

Enquanto os meus olhos percorrem as frondosas copas da alameda de tílias auguro as pedras nuas e luzidias da calçada molhada e as árvores despidas açoitadas pelas rajadas de vento. Virá outro inverno e com ele tudo isto. Depois, regressará o Verão. talvez o último, se o Outono anunciar a retirada...



(nas margens do rio Letes)

Aos vinte anos temos todos muita pressa de viver. Sobretudo a vida que há-de vir. Depois, mais tarde, é o inverso. A vida foi o que já foi.
Como agarrar esse fantasma escorregadio?






segunda-feira, 15 de junho de 2015

Recomeço dos dias de trabalho.
Complicadíssimo, como sempre que se retorna a uma rotina, o que quer dizer que se abandona outra.
Falhas, esquecimentos... e depois, por aquele efeito que a nossa própria cabeça tem sobre o mundo, o desconjuntar deste...
Hoje, a notícia de um suicídio na linha de comboio em simultâneo com o relato de alguém condenado à morte.




Que pensar perante isto? Quanto pesa a importância que damos às coisas?

sexta-feira, 15 de maio de 2015


[...]
-- Mas se a Pátria está em perigo?
-- A Pátria é mais bem servida por homens do que pelo dinheiro -- disse o rei.
[...]

O livro das Lendas, Selma Lagerlöf


[...] Herdei do meu pai a desconfiança perante as palavras. Mas admiro quem as talhe e burile até ao lustro das pedras preciosas e faça delas um colar magnífico e iridescente. Mas continuo na minha: não troco qualquer palavra por nenhuma ideia. (Ah! Como os outros me distraem! Mesmo agora, mesmo aqui!). Ah! Recapturei a matéria em que estava a pensar: há outra coisa que aprecio sobremaneira: o passaporte -- indo ao fundo -- o transporte... e isso é apanágio do que amo.

[nunca conseguiremos vencer a distância que nos separa] 




quarta-feira, 29 de abril de 2015



Na vida, comporto-me como aquele estremunhado - que sou eu! - que acorda a meio da noite e não sabe se decorreu meia hora ou a noite toda. E a vida é uma noite destas! Uma longa noite: para me ir habituando...



terça-feira, 7 de abril de 2015



A memória! Entrar num veículo e transitar por sítios perdidos nas esquinas do tempo! Ir num torvelinho de clarão em clarão, imagens que ficaram paradas no tempo sempre a fluir! Nesta esquina erguer os olhos para a janela onde espreitam o rosto agora indecifrável do V. e os olhos vazados e as pernas sem fim da irmã, musa e paixão inalcançável de todos nós. Espreitar a longilínea e curva fachada tardoz da fábrica de malhas, testemunha muda da caminhada diária para a escola, muitas vezes pisoteando charcos e cantando à chuva: “Chove, chove, galinha a nove”. (Ali, junto ao início do caminho, onde este desemboca na estrada, recordo o alarido, a morte do miúdo que imagino, pois nunca o vi, esborrachado entre o autocarro e o muro. Tremendo aviso!). Depois, enquadrada pela mercearia com o seu longo balcão onde imperava o facalhão de cobre, guilhotina que caia e rodava preso pela ponta quando cortava as postas de bacalhau, e pelo café com mesas e cadeiras volantes pelo largo passeio onde me recordo de assistir a espectáculos de robertos num palco improvisado com quatro biombos formando um paralelepípedo, ou pela ourivesaria com o respectivo ourives, ela aí está, passada toda esta minha vida, uma, a porta da casa da minha infância. Há aquela varanda onde criei rolas e bichos-da-seda… e mais alta, a janela das amigas, da amiga dos livros e dos sonhos, das horas perdidas onde encontrava o que nunca mais poderia encontrar. Mas há mais neste entrechocar de vertigens: o baldio, jardim das oliveiras, as paliçadas provisórias que julgávamos eternas, tudo, mas tudo, varrido pela abertura de uma nova avenida. No lado oposto, a estátua da menina e do seu cão, ainda lá estará ou também o vento e o tempo a terão levado no vendaval?  



terça-feira, 24 de março de 2015


A originalidade é uma treta mas a primeira vez é uma graça.
Depois, nunca mais volta a ser a mesma coisa.
Depois, é uma casa vazia com as portas arrombadas.
Depois, no meio dos escombros, é apenas um rótulo
num frasco vazio de onde se evolou a essência.



segunda-feira, 23 de março de 2015


Não prescindo da bicicleta. Ela é uma extensão das minhas pernas, como a máquina fotográfica é uma extensão dos meus olhos, a caneta da minha mão, um livro da minha cabeça. E se o mundo é cada vez mais pequeno é porque vou cada vez mais longe.


Não vale a pena fugir ao destino -- como tantas vezes tentei.
Ele tem as pernas mais compridas do que as nossas e acaba sempre por nos apanhar.
É só no fim do percurso que conhecemos o caminho.

(...)

sexta-feira, 6 de março de 2015


A estética, a construção da beleza, é um escudo e uma escuna para atravessar um mar onde muitos se afogam e outros naufragam.
Qualquer oceano se pode transpor se nele existirem pontos de apoios.
A constante e férrea perseguição da perfeição pode ser uma decisão estética.







segunda-feira, 19 de janeiro de 2015



Sair de casa a correr sem ver bem se levamos o que precisaremos, descer até à estação do caminho de ferro em passo estugado e depois... ficar a ver a gare a encher-se de gente enquanto se espera pela composição atrasada pelo suicídio de alguém noutro ponto da linha.