domingo, 27 de janeiro de 2013















Encontrei-a titubeante à saída do comboio, no cais. Peguei-lhe no braço e disse-lhe: "eu levo-a". Agradeceu-me efusivamente. Fiquei ligeiramente surpreendido. Explicou-me que já lhe tinha acontecido cair da plataforma do cais para a linha. Só quem se lançou para o abismo de olhos fechados conhece a angustia desse mergulho... Via-a depois seguir, tropeçando nas mudanças de inclinação do piso e sujeitando-se ao apoio desajeitado de quem a guiava agarrando-lhe na bengala, e não na mão ou no braço, como quem leva um cão pela trela.
Quando se vai até ao fim, não fica nada, podemos sacudir as mãos, seguir em frente e nem olhar para trás. Apagaram-se as luzes, o cego respirou de alívio…

Cegos, Flautas no canavial

sábado, 26 de janeiro de 2013



[…] Quanto a mim não sei línguas. Trata-se da minha vantagem. Permite-me verter poesia do Antigo Egipto, desconhecendo o idioma, para português. Pego no Cântico dos Cânticos, em inglês ou francês, e, ousando, ouso não só um poema português como também, e sobretudo, um poema meu. Versão indirecta, diz alguém. Recriação pessoal, diz alguém. Diletantismo ocioso, diz alguém. Não digo nada, eu. Se dissesse, diria: prazer. O meu prazer é assim: deambulatório, ao acaso, por súbito amor, projectivo. Não tenho o direito de garantir que esses textos são traduções.
[…]
Uma pessoa pergunta: e a fidelidade? Não há infidelidade. É que procuro construir o poema português pelo sentido emocional, mental, linguístico que eu tinha, sub-repticiamente, ao lê-lo em inglês, francês, italiano ou espanhol. É bizarramente pessoal. Mas não há fidelidade que o não seja. 
[…]
A regra de ouro é: liberdade. […]


Herberto Hélder, Photomaton & Vox




quinta-feira, 10 de janeiro de 2013






Jonathan Miller's Alice in Wonderland (1966) - Down The Rabbit-Hole


(carta a uma instituição requerendo uma bolsa)


Senhores,
Já me tem acontecido ir para as ruas por pura incompatibilidade com a espera sem data, uma expectativa que se consome a si mesma, sentimento tão comum à gente do meu tempo que abomina ver, mediadas, as imagens do mundo, enquanto o mundo requer que sobre ele se exerça a força nascida da nossa desaprovação, do medo. […]O assunto é o da natureza, e estilo no uso, da liberdade. E então se vou para as ruas não é porque as casas me sufoquem, se bem que me sufoquem, mas na perspectiva de me libertar de toda a sufocação.[…]Assisto até aonde o sentido abrange, e desgraçadamente tudo corre para a centrípeta possibilidade de ser abrangido, a uma singularíssima antropofagia. O sistema das coisas parece-me dotado de uma imensa mas selectiva fome: alimenta-se dos poderes opostos, devora a carne que não é da sua natureza e transforma-a na natureza da sua carne, devido àquele engenho e disposição de decompor e recompor, para exultante benefício da saúde e da longevidade dele, sistema, o organismo alheio, adverso, que obsta. É um caso de magia – apropriação sinistra pela boca implacavelmente esfaimada, do coração que o enfrenta. Não sei de desespero tão fundamental como este de gesto e palavra, os nossos, serem tão prestidigitadoramente reconvertidos ao gesto e palavra da regra. Abandone-se qualquer apetite ou inclinação pela inocência, entusiasmo simples ou arrebatamento revolucionário. Enrede-se a gente nas matemáticas, pense nos modos tortuosos de alcançar a teia nervosa desse computador em cujo centro opera o nódulo electrónico, para levar ao corpo geral do sistema a energia do poder, a efectivação do poder. Enquanto nós, os loucos, nos alimentamos apenas de intransigência, emoções truculentas, cândida violência de ideias, e vivemos da luminosidade da própria cabeça, os senhores, tão irrefutavelmente sentados à mesa antropófaga, devoram o, por assim dizer, o nosso corpo literal. Vivemos do medo e da sua gesticulação. E é desse medo que se alimentam os senhores, mestres de alguma vil ciência que temos que usurpar, de aprender. Há uma maneira torpemente minuciosa de destruir o corpo, o discurso projectado pela paixão, e é esse estilo sinuoso, subtilmente devastador, é o ritmo minado pela mais baixa e eficaz inteligência, que pedem uma perversa modulação nossa, a prática esquiva de uma esgrima, uma desonra, métodos. Sabedoria, sim, mas da inferior, uma atenção contando com a distracção alheia, isso: atenção à distracção. […] Não gosto dessas paisagens: nunca se encontraram com as minhas. O jeito em que todas as coisas foram colocadas instigou-me à vocação selvagem da desordem; estimula-me o pensamento de desmanchar tudo: os sítios nos tempos. Porque a história tem de ser feita ao contrário. […] Que humanismo? Lá isso! Já tanto me contaram de tantos humanismos, já, por motivo do humanismo, houve quem se votasse à expectativa da invasão dos bárbaros, que, senhores, prefiro destutelar-me de qualquer vocação humanista: peço apenas que me estimem o paradoxo e a ironia como uma arte. […] estamos evidentemente a braços com a minha cólera e as tácticas do poder, a avidez do poder, com o desumano envolvimento geral do crime. Terror e terrorismo são sumptuosos vocábulos de aterrorizar. […] Devo por isso conquistar o direito estilístico de aos senhores me dirigir armado da tenebrosa sintaxe em curso, com a intrínseca perversão gramatical em que comerciamos tudo: poder e submissão; insubmissão e castigo; terror e temor; discurso, silêncio. Estou numa aula de violência humanista; solicito os meios de passagem à transgressão pela violência. È tudo isto tão legitimamente afeiçoado às disposições gerais, tão pouco extraviado no dizer, que me não tolhe pôr na palavra crua o requerimento de me ser facultado uma bolsa de estudo e investigação de explosivos, armadilhas, bombas, instrumentos e processos radicais com que execute, o melhor que me for exposto, ou a cuja perícia chegue por talento e ensino, o plano de fazer ir pelos ares essa humanista, tão votada aos progressos, concedente instituição. […] Confio na própria ironia do poder, forma de se arriscar que às vezes o poder também encontra. E com que porventura se fortalece. Quanto a mim, amo a noite, o sangue, a desordem.


Herberto Helder, Photomaton & Vox





sexta-feira, 4 de janeiro de 2013