terça-feira, 15 de novembro de 2022

 (Sex, 26 Nov 21)

Este caderno coincidiu praticamente com o período da pandemia: tempo suspenso, parado, vazio... em que os dias não param porque são todos iguais. Tempo de isolamento, em que não se pode abraçar ninguém, nem beijar... nem sair, nem festejar... Tempo em que a associação característica do que é social é interdita ou, pelo menos, desaconselhável. Poderia ser um bom tempo para a criação pela solidão que pressupõe, pelo isolamento, pelo tipo de tempo que se vive (um relógio sem ponteiros). Mas tempo mais dramático para oa amantes não deve existir. Os amantes que estão sempre mais separados do que gostariam, são aqui separados por tudo. Até pelo silêncio. O que talvez acabe por ser o mais cruel.

Com o termo deste caderno talvez a minha atitude face ao tempo da pandemia acabe por mudar. Já tenho propósitos. Não posso dizer que não tenha já alguma coisa. (Ignorá-lo é uma forma de negar-lhe a existência).

Sadismo Cósmico

Há muito que o mundo se desfigura
tudo começou, era já um prenúncio
do que aí viria, e da proporção climática 
dos acontecimentos futuros,
com a invasão dos escaravelhos
que destruíram a sinalética da paisagem 
e os palmares que ficaram para sempre 
implantados na minha memória.
Antes já tinha vindo a troca da moeda
mas isso foram trocos
depois o atentado à linguagem
em que tiraram letras às palavras
desfiguraram-nas como acontece às caras
quando se vaza um olho
ou se enriquece os seus atributos
com uma cicatriz.
Hoje o mundo inteiro é uma colónia
sem colonizador.
Não me venham dizer
que é necessário alguma coisa
morrer para tudo continuar a viver.
Não, a construção da beleza no mundo
é muito mais lenta 
do que à sua destruição
a qual assistimos.


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O volte-face há muito aguardado! O Verão bate com a porta. De repente, um outro mundo se nos oferece. O céu escurece. Por detrás do nevoeiro espreita a chuva. O frio entra pelas frinchas das portas e das janelas. Mais uma estação. É mais um ano que fica para trás. Está abafado: anuncia-se a chuva.

Alcança-me um longínquo perfume.

O tempo é um vendaval inexorável... Caem as folhas amarelas das árvores secas ao ritmo das bátegas que sincopadamente caem do céu tamborilando nos beirados. O Verão foi-se, finou. Recomeça o infindável ciclo das estações. Imutável enquanto tudo se transmuta. O céu escurece como se as nuvens fossem uma cortina que se correu.

No jardim, molhado, tudo brilha.

(Qua, 3 Out 21)


O tempo é um vendaval inexorável

(tudo arranca, tudo leva consigo)

caem as folhas das árvores

secas, amarelas, retorcidas

ao contrário das bátegas

que sincopadamente caem do céu.

O Verão foi-se, finou-se

recomeça o infindável

ciclo das estações

o imutável

enquanto tudo se transmuta

(afinal como nós próprios)

O céu escurece como se as nuvens

fossem uma cortina que alguém correu.

No jardim molhado, tudo brilha.

Voltei a encontrar a sépia da minha juventude: naquele tempo acreditava que o que se escrevia verdadeiramente se escrevia com o sangue. O mais próximo do sangue seco é a sépia.

Hoje, já me esqueci da importância do sangue.
Já me esqueci que tudo é simbólico: que qualquer parte da vida, por pequena que seja, a compromete na sua totalidade.

Talvez fosse por isso que o António Pina dizia que quando compreendia tudo o que umas palavras diziam era porque faltava alguma coisa.

(Qua, 13 Out 21)

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Que dias estes!... dias que transformaram o viver num desafio... a incerteza revestiu todos os aspectos da vida, desde os mais sagrados: a saúde, a visão do mundo, a imagem do mundo que nos resta e que nos espera, até às coisas mais elementares como o funcionamento dos electrodomésticos  ou dos instrumentos que de um momento para o outro -- e sem explicação -- deixam de responder como de costume.

E é preciso saber viver com esta instabilidade e incerteza, relativiza-la, respirar fundo e continuar.

Viver uma pandemia é estar permanente imerso na estranheza. Tudo a abanar e nada se poder dar por certo. As fronteiras diluíram-se e esbateram-se. Os velhos hesitam entre o medo e a indiferença pelo que sempre acreditaram, os jovens, entre a eterna esperança e a descrença.

Durante anos ela já fermentava: 'um dia de cada vez', mesmo que não se acreditasse verdadeiramente no que se dizia. Hoje é uma simples realidade, porque não se consegue vislumbrar com nitidez o dia seguinte e o ontem já foi há demasiado tempo.

Outra coisa que se estabeleceu foi a distância, dizem-na social para vincar que é relativamente aos outros. Se só há agora não pode haver rota, nem destino.

(Qua, 21 de Jul 21)


O que a Pandemia veio fazer foi estilhaçar todas as rotinas que sustentavam as actividades em que se dividia a vida.
Agora, parece que a questão é como reconstituir a vida fragmentada e desarticulada.

(Qua, 13 Out 21)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Cinemateca, 'O pecado mora ao lado'
25 Out 22


Passo ao lado das ruínas: casas, jardins... há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?

Diz R.B. que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda da chuva ou da neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorte, da confusão , de perder o pé foi maior. 

Os anos escorrem uns sobre os outros, perde-se a noção de quando acaba um e começa outro. Os lugares transitam, mudam de sítio e perdem a ordem cronológica. É preciso fixá-los, prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.

Os obstáculos para viver somam-se, amontoam-se à medida que o tempo passa... vence-los será como voltar a encher o frasco com o mesmo líquido depois de este se ter derramado...



quinta-feira, 20 de outubro de 2022


A pandemia é uma coisa tão recente e tão antiga! Quando queremos reconstituir os acontecimentos quanta dificuldade... Sabemos que foi de repente, de súbito, de fora para dentro. As instruções para alterar comportamentos vieram pelos meios de comunicação, a televisão principalmente; as actividade foram uma após outra suspensas e canceladas. O fecho da sociedade talvez para mim, afastado da vida colectiva e profissional, tenha sido ainda mais abstrata, abrupta e irreal. Irreal é a palavra que talvez melhor descreva o sentimento que a situação suscita. Mas prolonga-se há já tempo suficiente para se compreender que não será passageira nem inócua, isto é, que o reatar não parece possível nos mesmos moldes. Existe o medo do outro, o medo do contágio. Para além das consequências imediatas haverá as que se projectarão nos tempos -- difíceis de imaginar -- que se seguirão.

(21 de Março de 20, sab.)


A pandemia rarefez o mundo. Sugou a vida das ruas. Desfez hábitos. Estilhaçou rotinas. Cavou abismos. Silenciou vozes. Deixou de haver notícias.

               (1 de Outubro de 20)


O caderno da Pandemia -- o diário, no seu duplo papel -- afrouxar a tirania do tempo e sacudir os horários.

(Sexta, 13 de Novembro de 20)

Fui à estação, dos caminhos de ferro, ver se os comboios continuavam a circular no recolher obrigatório. No meu imaginário só em estado de guerra é que havia recolher obrigatório: agora sei que o mesmo pode ocorrer, ou ser decretado, em pandemia. Hoje e talvez não só hoje, mas habitualmente estaremos pouco atentos, tudo se conjugou: um dia de nevoeiro e nuvens baixas a ameaçar sempre chuviscos, ruas totalmente desertas, tudo parado! nem o vento participa nem abana seja o que for e sobre tudo isto como um grande laço: um silêncio total em que os pequenos ruídos parecem sons do além. Mas esta estranheza sublinha a beleza do que se vê.
O primeiro dia do recolher obrigatório neste fim de semana desusado e o resto do dia de chinelos e de pijama.

(Sábado, 14 de Novembro de 20)

A Pandemia, uma estranheza que se apoderou do mundo, ensinou-me muita coisa e recapitulou várias oportunidades. Como todas as doenças prolongadas, (haverá outras?), empurrou-me para os corredores da minha própria biblioteca. As doenças sempre foram períodos de leitura intensa. A reclusão, o confinamento, para quem vive sozinho, obriga-o a encarar-se a si próprio, não há para onde fugir. A casa, a nossa própria casa, é a nossa prisão, é o nosso castelo onde deixa de haverrecantos desconhecidos, onde se abrem novas alamedas e guaritas. Tomei posse da minha casa com esta doença. A Pandemia operou também uma profunda mudança no tempo, ao reduzi-lo comprimiu-o. Por muito que nos custe veio dizer-nos que não há amanhã e que hoje não é uma passagem é um estado onde quero habitar: Desenhar continuamente, ter um projecto de escrita.

(26 Abril de 21)