segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Que dias estes!... dias que transformaram o viver num desafio... a incerteza revestiu todos os aspectos da vida, desde os mais sagrados: a saúde, a visão do mundo, a imagem do mundo que nos resta e que nos espera, até às coisas mais elementares como o funcionamento dos electrodomésticos  ou dos instrumentos que de um momento para o outro -- e sem explicação -- deixam de responder como de costume.

E é preciso saber viver com esta instabilidade e incerteza, relativiza-la, respirar fundo e continuar.

Viver uma pandemia é estar permanente imerso na estranheza. Tudo a abanar e nada se poder dar por certo. As fronteiras diluíram-se e esbateram-se. Os velhos hesitam entre o medo e a indiferença pelo que sempre acreditaram, os jovens, entre a eterna esperança e a descrença.

Durante anos ela já fermentava: 'um dia de cada vez', mesmo que não se acreditasse verdadeiramente no que se dizia. Hoje é uma simples realidade, porque não se consegue vislumbrar com nitidez o dia seguinte e o ontem já foi há demasiado tempo.

Outra coisa que se estabeleceu foi a distância, dizem-na social para vincar que é relativamente aos outros. Se só há agora não pode haver rota, nem destino.

(Qua, 21 de Jul 21)


O que a Pandemia veio fazer foi estilhaçar todas as rotinas que sustentavam as actividades em que se dividia a vida.
Agora, parece que a questão é como reconstituir a vida fragmentada e desarticulada.

(Qua, 13 Out 21)

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Cinemateca, 'O pecado mora ao lado'
25 Out 22


Passo ao lado das ruínas: casas, jardins... há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?

Diz R.B. que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda da chuva ou da neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorte, da confusão , de perder o pé foi maior. 

Os anos escorrem uns sobre os outros, perde-se a noção de quando acaba um e começa outro. Os lugares transitam, mudam de sítio e perdem a ordem cronológica. É preciso fixá-los, prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.

Os obstáculos para viver somam-se, amontoam-se à medida que o tempo passa... vence-los será como voltar a encher o frasco com o mesmo líquido depois de este se ter derramado...



quinta-feira, 20 de outubro de 2022


A pandemia é uma coisa tão recente e tão antiga! Quando queremos reconstituir os acontecimentos quanta dificuldade... Sabemos que foi de repente, de súbito, de fora para dentro. As instruções para alterar comportamentos vieram pelos meios de comunicação, a televisão principalmente; as actividade foram uma após outra suspensas e canceladas. O fecho da sociedade talvez para mim, afastado da vida colectiva e profissional, tenha sido ainda mais abstrata, abrupta e irreal. Irreal é a palavra que talvez melhor descreva o sentimento que a situação suscita. Mas prolonga-se há já tempo suficiente para se compreender que não será passageira nem inócua, isto é, que o reatar não parece possível nos mesmos moldes. Existe o medo do outro, o medo do contágio. Para além das consequências imediatas haverá as que se projectarão nos tempos -- difíceis de imaginar -- que se seguirão.

(21 de Março de 20, sab.)


A pandemia rarefez o mundo. Sugou a vida das ruas. Desfez hábitos. Estilhaçou rotinas. Cavou abismos. Silenciou vozes. Deixou de haver notícias.

               (1 de Outubro de 20)


O caderno da Pandemia -- o diário, no seu duplo papel -- afrouxar a tirania do tempo e sacudir os horários.

(Sexta, 13 de Novembro de 20)

Fui à estação, dos caminhos de ferro, ver se os comboios continuavam a circular no recolher obrigatório. No meu imaginário só em estado de guerra é que havia recolher obrigatório: agora sei que o mesmo pode ocorrer, ou ser decretado, em pandemia. Hoje e talvez não só hoje, mas habitualmente estaremos pouco atentos, tudo se conjugou: um dia de nevoeiro e nuvens baixas a ameaçar sempre chuviscos, ruas totalmente desertas, tudo parado! nem o vento participa nem abana seja o que for e sobre tudo isto como um grande laço: um silêncio total em que os pequenos ruídos parecem sons do além. Mas esta estranheza sublinha a beleza do que se vê.
O primeiro dia do recolher obrigatório neste fim de semana desusado e o resto do dia de chinelos e de pijama.

(Sábado, 14 de Novembro de 20)

A Pandemia, uma estranheza que se apoderou do mundo, ensinou-me muita coisa e recapitulou várias oportunidades. Como todas as doenças prolongadas, (haverá outras?), empurrou-me para os corredores da minha própria biblioteca. As doenças sempre foram períodos de leitura intensa. A reclusão, o confinamento, para quem vive sozinho, obriga-o a encarar-se a si próprio, não há para onde fugir. A casa, a nossa própria casa, é a nossa prisão, é o nosso castelo onde deixa de haverrecantos desconhecidos, onde se abrem novas alamedas e guaritas. Tomei posse da minha casa com esta doença. A Pandemia operou também uma profunda mudança no tempo, ao reduzi-lo comprimiu-o. Por muito que nos custe veio dizer-nos que não há amanhã e que hoje não é uma passagem é um estado onde quero habitar: Desenhar continuamente, ter um projecto de escrita.

(26 Abril de 21)

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

 Recordo e assombra-me sempre a recordação da calma do meu irmão.

Uma vez, eu, sempre a contar o tempo, perguntei-lhe se consultava algum horário antes de se pôr a caminho da estação para apanhar o comboio. Respondeu-me com um sorriso que quando queria ir-se embora se punha a caminho da estação e o comboio que viesse quando tivesse que vir.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Dia de Reis. Reis Magos claro! que depois da oferta dos presentes desapareceram para sempre. E que voltam todos os anos para nos relembrarem da sua ausência.


(6 de Janeiro de 2020)

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

(1ª versão)

 Já passei uma horas em tantos sítios...
Horas inesquecíveis, 
que recordo quando entro em certos locais.
Horas enterradas no passado
que é como quem diz, na memória
já que o passado não existe sem ela.
O mais trágico, -- e o mais frequente -- ,
são as memórias sem testemunhas.
Quando desaparecermos
desaparecerão também essas recordações
que ainda hoje
lá do meio do nevoeiro onde sobrevivem
nos apertam o estômago
e nos enchem os olhos de lágrimas.
Minto. Exagero.
É que o silêncio aperta o coração.


(Reescrita)

Entrei naquele café
onde certas horas e o teu retrato
ficaram para sempre.
Trágico e perturbador
é já não haver testemunhas.
Ficarmos condenados
à solidão e ao silêncio.
Quando desaparecermos
desaparecerão também 
as recordações
que nos apertam o estômago
que nos enchem os olhos
de lágrimas. 

Minto.         Exagero.
É o silêncio
a apertar o coração.

domingo, 24 de julho de 2022

A propósito de Alphaville, de Godard

Voltei ao mesmo local cinquenta e poucos anos depois. Para tentar perceber. Da razão de ser destas palavras passei a outro motivo mais lato, e mais importante, o que teria acontecido nesses cinquenta anos?
(A verdade é que o que teria então sido anunciado está hoje completamente vigente).

O que se teria passado? Como condensar num relance tantos acontecimentos? Em que uns projectam uma sombra que obscurece outros e os coloca definitivamente longe da luz...
No entretanto, a morte faz ocasionalmente as suas sortidas... como um aguaceiro rápido e repentino. Com a gravidade inexorável de tudo quanto existe neste mundo...
Queixo-me da falta de comunicação: não compreendi a tempo o que me diziam; sempre foi impossível fazer ver aos aos outros o que via; nunca estive ao mesmo tempo que os outros no mesmo sítio... enfim, cheguei sempre antes ou depois. Estive sempre no palco mas ao lado do que se passava na cena.
E de tempos a tempos estas irrupções da presença da morte. Como um gongo ou as pancadas do bastão no teatro que anuncia que o espectáculo se iniciará dentro de momentos.