Voltei a encontrar a sépia da minha juventude: naquele tempo acreditava que o que se escrevia verdadeiramente se escrevia com o sangue. O mais próximo do sangue seco é a sépia.
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
segunda-feira, 31 de outubro de 2022
Que dias estes!... dias que transformaram o viver num desafio... a incerteza revestiu todos os aspectos da vida, desde os mais sagrados: a saúde, a visão do mundo, a imagem do mundo que nos resta e que nos espera, até às coisas mais elementares como o funcionamento dos electrodomésticos ou dos instrumentos que de um momento para o outro -- e sem explicação -- deixam de responder como de costume.
E é preciso saber viver com esta instabilidade e incerteza, relativiza-la, respirar fundo e continuar.
Viver uma pandemia é estar permanente imerso na estranheza. Tudo a abanar e nada se poder dar por certo. As fronteiras diluíram-se e esbateram-se. Os velhos hesitam entre o medo e a indiferença pelo que sempre acreditaram, os jovens, entre a eterna esperança e a descrença.
Durante anos ela já fermentava: 'um dia de cada vez', mesmo que não se acreditasse verdadeiramente no que se dizia. Hoje é uma simples realidade, porque não se consegue vislumbrar com nitidez o dia seguinte e o ontem já foi há demasiado tempo.
Outra coisa que se estabeleceu foi a distância, dizem-na social para vincar que é relativamente aos outros. Se só há agora não pode haver rota, nem destino.
(Qua, 21 de Jul 21)
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Passo ao lado das ruínas: casas, jardins... há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?
Diz R.B. que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda da chuva ou da neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorte, da confusão , de perder o pé foi maior.
Os anos escorrem uns sobre os outros, perde-se a noção de quando acaba um e começa outro. Os lugares transitam, mudam de sítio e perdem a ordem cronológica. É preciso fixá-los, prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.
Os obstáculos para viver somam-se, amontoam-se à medida que o tempo passa... vence-los será como voltar a encher o frasco com o mesmo líquido depois de este se ter derramado...
quinta-feira, 20 de outubro de 2022
A pandemia rarefez o mundo. Sugou a vida das ruas. Desfez hábitos. Estilhaçou rotinas. Cavou abismos. Silenciou vozes. Deixou de haver notícias.
(1 de Outubro de 20)
O caderno da Pandemia -- o diário, no seu duplo papel -- afrouxar a tirania do tempo e sacudir os horários.
(Sexta, 13 de Novembro de 20)
A Pandemia, uma estranheza que se apoderou do mundo, ensinou-me muita coisa e recapitulou várias oportunidades. Como todas as doenças prolongadas, (haverá outras?), empurrou-me para os corredores da minha própria biblioteca. As doenças sempre foram períodos de leitura intensa. A reclusão, o confinamento, para quem vive sozinho, obriga-o a encarar-se a si próprio, não há para onde fugir. A casa, a nossa própria casa, é a nossa prisão, é o nosso castelo onde deixa de haverrecantos desconhecidos, onde se abrem novas alamedas e guaritas. Tomei posse da minha casa com esta doença. A Pandemia operou também uma profunda mudança no tempo, ao reduzi-lo comprimiu-o. Por muito que nos custe veio dizer-nos que não há amanhã e que hoje não é uma passagem é um estado onde quero habitar: Desenhar continuamente, ter um projecto de escrita.
(26 Abril de 21)
quarta-feira, 19 de outubro de 2022
Recordo e assombra-me sempre a recordação da calma do meu irmão.
Uma vez, eu, sempre a contar o tempo, perguntei-lhe se consultava algum horário antes de se pôr a caminho da estação para apanhar o comboio. Respondeu-me com um sorriso que quando queria ir-se embora se punha a caminho da estação e o comboio que viesse quando tivesse que vir.
terça-feira, 11 de outubro de 2022
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
Horas inesquecíveis,
que recordo quando entro em certos locais.
Horas enterradas no passado
que é como quem diz, na memória
já que o passado não existe sem ela.
O mais trágico, -- e o mais frequente -- ,
são as memórias sem testemunhas.
Quando desaparecermos
desaparecerão também essas recordações
que ainda hoje
lá do meio do nevoeiro onde sobrevivem
nos apertam o estômago
e nos enchem os olhos de lágrimas.
Minto. Exagero.
É que o silêncio aperta o coração.