sábado, 9 de novembro de 2013



MANSÕES FLORENTINAS

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Nos dois grandes volumes ilustrados da sua obra Ville di Firenze (Vallecchi), Giulio Lensi Orlandi Cardini não nos dá apenas um repertório espantoso, mas um verdadeiro e real tratado sobre a mansão  e sobre a arte de construir mansões; e as precisões técnicas do arquitecto, a sua consumada experiência da arte e das suas aplicações nos tempos, estão recheadas de acontecimentos secretos, esotéricos, e combinam-se de modo a que o leitor receba um gosto refinado de impecabilidade técnica e de mistério. É este um dos grandes cânones da arte em geral, seja a de escrever, na qual Giulio Lensi Orlandi é eminente, seja o de construir uma villa. E como a mansão toscava é disso o exemplo mais completo, a sua história e a sua qualidade são mais do que paradigmáticas. Nelas se demostra, uma vez mais, que a beleza tem raízes na necessidade natural e espiritual (sede de frescura estival ou necessidade de se recompor, na contemplação repousada de uma ordem calma e rigorosa, das canseiras da actividade mercantil ou da inteligência política); que o seu preço secreto é a renúncia , "o espírito do conhecimento etrusco, limite e moderação no excesso de todas as vaidades decorativas" (litotes de varandas e portas, segredo de paredes e sebes); que a sua força e elegância é fidelidade às antiquíssimas tradições da arte que passou de homem para homem;  e o seu renovar-se um cada vez mais aprofundamento dessas tradições, no que elas têm de mais arcaico e não na mera forma, que não pode deixar de se tornar pura arqueologia, super-estrutura ou mutilação.
Em todas estas residências, algumas delas já "existentes há dois ou três mil anos atrás", outras "documentam uma existência de sete ou oito séculos", e outras que sofreram todas as metamorfoses mesmo do romantismo arqueológico de uma ou outra cultura (pois estamos sempre em presença de várias culturas), em todas estas residências Lensi Orlandi recupera os elementos puros da domus romana, da oculta habitação etrusca, depois a arcada da Idade Média e do Renascimento até à universal decadência dos séculos XVII E XVIII.
Ele demostra, como todo aquele que conhece profundamente uma arte, que sempre que a mansão toscava recupera esse mundo compacto e leve, severo e gracioso que estava nas suas origens como uma nascente secreta, foi ela própria e foi eterna ("a arquitectura de Brunelleschi: uma arquitectura latina traduzida para o vulgar, mas num vulgar que tem a pureza de um cristal"); e quanto mais se serviu de intromissões momentâneas mais literária foi, datada e caduca.
Por isso, ao lermos este livro brilhante, encontramos em filigrana a história verdadeira de uma lenda, a situação precisa, em termos de arte arquitectónica, dos verdes paraísos onde uma cidade conseguiu (e consegue ainda, de forma prodigiosa) defender a sua incomparável arte de viver. Os nomes, frescos como jorros de água e ilustres das antigas leituras, fazem-nos estremecer: Fontallerta, a Fonte dos Três Rostos, o Palácio dos Peixes; mais belos, por vezes, que a própria mansão, mudada, reconstruída. Nomes que, como a madeleine da chávena encantada de Proust, ainda nós libertam no tempo o nome puro da Europa e a memória de uma relação entre os homens, os proprietários da mansão, os vizinhos da mansão, os vivos e os mortos que viveram na mesma mansão, que só naquela paisagem, e nalguns momentos fragilíssimos e perenes, foi possível e abençoada pelo céu.


-- Cristina Campo, SOB UM FALSO NOME, Assírio & Alvim

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