quinta-feira, 1 de novembro de 2012


Terça-feira de manhã, [17 de  Março de 1942], 
às nove e meia.



   Ontem à noite, quando ia ir ter com ele de bicicleta, havia um grande e aprazível desejo de primavera em mim. E enquanto eu pedalava em cima do asfalto da rua Lairesse, desejando-o e com sonhos na cabeça, senti-me de repente acariciada por um ar tépido de primavera. E subitamente pensei: "Assim também está bem. Porque é que uma pessoa não havia de experimentar uma grande e terna euforia pela primavera e, também, por todas as pessoas?" Uma pessoa pode igualmente encetar amizade com um inverno, ou uma cidade ou um país. Lembro-me da faia cor de vinho, dos meus anos de adolescência. Tinha com ela uma espécie de relação especial. À noite, podia de repente ansiar por ela, e, então, ia visitá-la. Fazia meia hora de bicicleta e depois andava à volta dela, cativada e enfeitiçada pela sua cor carmim. Sim, porque razão é que uma pessoa não poderia sentir amor por uma primavera? E as carícias do ar primaveril eram tão delicadas e tão envolventes, que mãos masculinas, mesmo que fossem as dele, em comparação com elas me haveriam de parecer rudes.
   E foi assim que cheguei a casa dele. O pequeno quarto de dormir apanhava um pouco de luz vinda do quarto de trabalho e, quando entrei, reparei que a cama dele estava aberta e que, dobrado por cima dela, havia um pesado ramo de orquídeas aromatizando o quarto. E na mesinha ao lado da almofada havia narcisos, muito amarelos, tão extremamente amarelos e frescos. A cama aberta e as orquídeas e os narcisos -- uma pessoa nem precisa de se deitar acompanhada naquela cama. Enquanto ali estive, por um instante, naquele quarto meio iluminado, foi como se tivesse tido uma noite inteira de amor. E ele estava sentado à pequena escrivaninha e de novo me saltou à vista como o rosto dele se assemelhava a uma paisagem antiga, cinzenta e gasta.
   Pois, estás a ver, uma pessoa necessita de ter paciência. O teu desejo deve ser como um navio lento e majestoso, navegando no oceano infinito e não à procura de um local onde largar a âncora. E de súbito, inesperadamente, dás de caras com um local onde ancorar por um momento. Ontem à noite, encontrou o seu ancoradouro por um breve instante. (...)





Etty  Hillesum, DIÁRIO, 1941-1943

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