segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Aqui estou -- travado por mim próprio -- e, como dizia R., a conseguir ouvir a passagem do tempo. Com a remota esperança de assistir ao encher da minha própria maré. Sei, e no entanto estou paralisado, que só o fazer pode continuar a tecer o fio da vida.

Filologia, era a nomenclatura para a noção que queria transmitir, o que procurava.

(princípios de Outubro de 22)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Passo ao lado de ruínas: casas, jardins. Há muito que o mundo se fragmenta. Regurgita lentamente e reconstitui-se num outro. Mas a beleza, Meu Deus! Onde ficou?

Diz Roland Barthes que a poesia japonesa tem sempre um referente temporal: a uma estação, a uma hora do dia, a uma atmosfera (a ventania, a queda de chuva ou de neve...). É essa necessidade premente que sinto: nunca o perigo do desnorteamento, da confusão, de perder o pé, foi maior. Os anos escorrem uns sobre os outros de tal forma que a noção de quando acaba um e começa o outro se perde. Os lugares transitam, mudam de sítio, perdem a ordem cronológica. 

É preciso fixá-los. Prender os acontecimentos ao calendário, interromper a desordem em que se transformou a vida.

(25Out22)

Como a memória começa a ser intermitente como a luz do pirilampo tomei a resolução de resumir todos os dia no pequeno espaço reservado a cada um deles na agenda que comprei.

Escrever por escrever nunca é escrever por escrever porque esse exercício põe em movimento muito mais do que o papel e a caneta; a questão transporta-nos à dilemática da arte pela arte que não resume a arte.
É que as palavras para fazerem sentido, qualquer sentido, têm que ter um fio condutor e esse fio é o do raciocínio, é o pensamento.
E não há coisa mais necessária ao homem.
Pensar, o maior desporto, o maior exercício, o maior luxo.
Do que se escreve alguma coisa fica. E o que fica é a nossa maior preocupação. Como ter chão sob os pés.

Estar à espera parece ser a grande, a maior e única ocupação da maior parte da humanidade. E a grande espera, a maior, a omnipresente, é a da morte. É a espera que engole todas as outras e a única que não oferece qualquer dúvida. É mesmo a única carregada de certeza. Mas de uma certeza em que não se acredita.

(Ter,10Mai22)

Como o tempo arredonda os bicos das coisas mais escandalosas e escabrosas! A paixão acaba sempre por obter o seu perdão.

A doçura di viver não estará sempre ligada a uma certa inocência? A uma leveza que não admite o pesadume e antes advoga a flutuosidade. Por amor tudo é permitido: é a lição de Prima della Rivoluzione.

(Sex,11Mar21)

As surpresas que as falhas de memória nos provocam! para dispersar a minha apreensão dizia-me a minha amiga que eu sempre lhe tinha dito que era distraído. Mas a verdade é que temos que viver com o que temos e com o que não temos.

As falhas de memória também alimentam as obsessões; assim, sem qualquer remorso ou arrependimento podemos repetir indefinidamente os mesmos gestos e atitudes como quem vai repetidamente á fonte sem ter consciência de estar já saciado.

(sex, 6Dez21)

Depois de um longo interregno, aqui estamos. O que esqueci hoje? Talvez os óculos de leitura, não sei. Não parece grave, mas pelo sim pelo não, e de todos os modos, resolvi ter uma tábua, um corrimão, um calendário onde escreverei em todos os dias aquilo de que me esquecer. Não tenho dúvidas de que haverá imensas repetições, recaídas. Serão, porventura, um registo das obsessões. Mas o que é certo é que o esquecimento veio para ficar. Para ocupar cada vez mais espaço na cena. Para finalmente a ocupar por completo.

(Cinemateca, 21Nov22)

Parece-me ter chegado à idade de tudo. 
Tudo vi, tudo conheci, já tudo nada me diz.
Tão rodeado de tudo praticamente tudo me falta.
A vida talvez seja isto:
a contradição em estado puro.


TUDO

"Uma palavra descarada e inchada de arrogância
Deveria ser escrita entre aspas
Finge nada deixar de fora,
para concentrar, incluir, conter e ter
Mas é apenas
um pedaço de tempestade"

Wislawa Szymborska

terça-feira, 15 de novembro de 2022

 (Sex, 26 Nov 21)

Este caderno coincidiu praticamente com o período da pandemia: tempo suspenso, parado, vazio... em que os dias não param porque são todos iguais. Tempo de isolamento, em que não se pode abraçar ninguém, nem beijar... nem sair, nem festejar... Tempo em que a associação característica do que é social é interdita ou, pelo menos, desaconselhável. Poderia ser um bom tempo para a criação pela solidão que pressupõe, pelo isolamento, pelo tipo de tempo que se vive (um relógio sem ponteiros). Mas tempo mais dramático para oa amantes não deve existir. Os amantes que estão sempre mais separados do que gostariam, são aqui separados por tudo. Até pelo silêncio. O que talvez acabe por ser o mais cruel.

Com o termo deste caderno talvez a minha atitude face ao tempo da pandemia acabe por mudar. Já tenho propósitos. Não posso dizer que não tenha já alguma coisa. (Ignorá-lo é uma forma de negar-lhe a existência).