(carta a uma instituição requerendo uma bolsa)
Senhores,
Já
me tem acontecido ir para as ruas por pura incompatibilidade com a espera sem
data, uma expectativa que se consome a si mesma, sentimento tão comum à gente
do meu tempo que abomina ver, mediadas, as imagens do mundo, enquanto o mundo
requer que sobre ele se exerça a força nascida da nossa desaprovação, do medo.
[…]O assunto é o da natureza, e estilo no uso, da liberdade. E então se vou
para as ruas não é porque as casas me sufoquem, se bem que me sufoquem, mas na
perspectiva de me libertar de toda a sufocação.[…]Assisto até aonde o sentido
abrange, e desgraçadamente tudo corre para a centrípeta possibilidade de ser
abrangido, a uma singularíssima antropofagia. O sistema das coisas parece-me
dotado de uma imensa mas selectiva fome: alimenta-se dos poderes opostos,
devora a carne que não é da sua natureza e transforma-a na natureza da sua
carne, devido àquele engenho e disposição de decompor e recompor, para
exultante benefício da saúde e da longevidade dele, sistema, o organismo
alheio, adverso, que obsta. É um caso de magia – apropriação sinistra pela boca
implacavelmente esfaimada, do coração que o enfrenta. Não sei de desespero tão
fundamental como este de gesto e palavra, os nossos, serem tão
prestidigitadoramente reconvertidos ao gesto e palavra da regra. Abandone-se
qualquer apetite ou inclinação pela inocência, entusiasmo simples ou
arrebatamento revolucionário. Enrede-se a gente nas matemáticas, pense nos
modos tortuosos de alcançar a teia nervosa desse computador em cujo centro
opera o nódulo electrónico, para levar ao corpo geral do sistema a energia do
poder, a efectivação do poder. Enquanto nós, os loucos, nos alimentamos apenas
de intransigência, emoções truculentas, cândida violência de ideias, e vivemos
da luminosidade da própria cabeça, os senhores, tão irrefutavelmente sentados à
mesa antropófaga, devoram o, por assim dizer, o nosso corpo literal. Vivemos do
medo e da sua gesticulação. E é desse medo que se alimentam os senhores,
mestres de alguma vil ciência que temos que usurpar, de aprender. Há uma
maneira torpemente minuciosa de destruir o corpo, o discurso projectado pela
paixão, e é esse estilo sinuoso, subtilmente devastador, é o ritmo minado pela
mais baixa e eficaz inteligência, que pedem uma perversa modulação nossa, a
prática esquiva de uma esgrima, uma desonra, métodos. Sabedoria, sim, mas da
inferior, uma atenção contando com a distracção alheia, isso: atenção à
distracção. […] Não gosto dessas paisagens: nunca se encontraram com as minhas.
O jeito em que todas as coisas foram colocadas instigou-me à vocação selvagem
da desordem; estimula-me o pensamento de desmanchar tudo: os sítios nos tempos.
Porque a história tem de ser feita ao contrário. […] Que humanismo? Lá isso! Já
tanto me contaram de tantos humanismos, já, por motivo do humanismo, houve quem
se votasse à expectativa da invasão dos bárbaros, que, senhores, prefiro
destutelar-me de qualquer vocação humanista: peço apenas que me estimem o
paradoxo e a ironia como uma arte. […] estamos evidentemente a braços com a
minha cólera e as tácticas do poder, a avidez do poder, com o desumano
envolvimento geral do crime. Terror e terrorismo são sumptuosos vocábulos de
aterrorizar. […] Devo por isso conquistar o direito estilístico de aos senhores
me dirigir armado da tenebrosa sintaxe em curso, com a intrínseca perversão
gramatical em que comerciamos tudo: poder e submissão; insubmissão e castigo;
terror e temor; discurso, silêncio. Estou numa aula de violência humanista;
solicito os meios de passagem à transgressão pela violência. È tudo isto tão
legitimamente afeiçoado às disposições gerais, tão pouco extraviado no dizer,
que me não tolhe pôr na palavra crua o requerimento de me ser facultado uma
bolsa de estudo e investigação de explosivos, armadilhas, bombas, instrumentos
e processos radicais com que execute, o melhor que me for exposto, ou a cuja
perícia chegue por talento e ensino, o plano de fazer ir pelos ares essa
humanista, tão votada aos progressos, concedente instituição. […] Confio na
própria ironia do poder, forma de se arriscar que às vezes o poder também
encontra. E com que porventura se fortalece. Quanto a mim, amo a noite, o
sangue, a desordem.
Herberto
Helder, Photomaton & Vox
Sem comentários:
Enviar um comentário